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Sono

Bórgia Ginz

 

 

SONO

 

Entrei na morgue no dia mais feliz da minha infância. Os braços esticados, em forma de sono, impeliam-me majestosamente em direcção ao desconhecido por que eu tanto ansiava, em formas estridentes de loucura suave e pacífica. Encontrara pela primeira vez o verme longínquo e latente que me atormentara a consciência durante tantos anos, e a calma dos meus ossos assombrava a quietude do meu andar seguro pleno de convicção. Todas as dores em lençóis brancos sujos de mágoa, que eu visitara no meio do meu sono mais suave, desvaneciam-se agora sob o efeito de cada passo inclinado na escada sempre a subir do corredor que antecedia a porta alta e branca, de ferro lacado, pintalgada aqui e ali de manchas de ferrugem mais velhas do que eu. Os dedos hirtos e suplicantes, sonhando vozes de torturas carnais de odores intensos, faziam o prolongamento físico da minha pura e intensa vontade de me tornar crescente em direcção ao mais majestoso dos momentos por mim sonhados nas noites do meu sono quebrado. Eu via as lógicas capitais dos censos de perigo amortalhado, aqueles que eu criava e matava enquanto a língua atingia o ponto mais saliente da parede que normalmente se erguia à minha frente. Via os monstros alados que pernoitavam simplesmente no encantamento mais subtil de uma noite vibrantemente engrandecida ao extremo da minha dor.   Com   toda a   volúpia  das  mulheres que   gritavam  e  chamavam  pelo  meu nome a  dançarem    de    encontro    ao    meu    corpo    que se ia transformando em libélula gigante do tamanho de doze igrejas. Do sino da torre mais alta era executada uma balalaica de tempos imemoriais  que  me  feria os ouvidos mas não o nariz, que é a parte mais preciosa do meu corpo celeste; em ondas azuis e vermelhas e verdes de conspiração que teimavam em não desaparecer e que eu criava por entre os meus dedos para me divertir. Via os corpos meio antes de serem aplainados pelo martelo de oiro fundido que surgia do ar numa elipse de contornos fantásticos e cruéis. E só a memória ficava plena de convicção e fúria, pois no assombro do sentir residia o sonho perdido de anos.                  
          Assombrei-me de encontro à parede nua e fria. Os ruídos longínquos que chegavam até mim em ondas de som violento e esmagador diziam-me que me aventurara longe de mais. O meu sexo endiabrado empolgava-se em demasia. Como se todas as mulheres de todos os mundos possíveis se consolassem de encontro aos meus membros inferiores e os fizessem prostrar no meio do maior alarido. Os olhos, bem enfiados no pedaço de luz que se esgueirava pela abertura semi redonda que à minha frente se erguia, perscrutavam e ansiavam pelo mais pequeno movimento, aquele que retinisse na base da nuca as vagas rimbombantes do meu adeus embriagado de choro. Não havia dúvidas, era tempo de entrar.
          Senti um arrepio maravilhoso quando a palma da minha mão encontrou o frio da maçaneta da cor do oiro. Não foi difícil rodar um pouco o pulso. De olhos fechados, antevendo o sublime momento que presenciaria, ergui uma perna e entrei. 
         

 

(continua…)

 





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