Airf’Auga 2
Água Fria
A mente é por natureza um poço de perversão. A supressão das mais elementares ilusões, que nos vibram golpes de encanto de vigor esplendoroso, significa a estupidificação de tudo o que nos faz ser e estar. Antes estar morto que mal vivo. Os cadáveres não procriam deformações. E a maior enfermidade dos grous da modernidade é serem eles tão somente a sua própria negação.
Para um golpe de estado
Temos o sonho entalado no meio dos nossos dentes amarelecidos pelo tempo. Temos toda a nossa intelectualidade metafísica dispersada na imensa miserabilidade do nosso corpo, e com isso sofremos todas as atrocidades que nos fazem arredar passo de toda a “outra” humanidade. O exagero das formas passa por ser hoje em dia uma verdadeira instituição comportamental, toda de beleza feita nas faces frescas dos jovens. Mas, até quando a juventude?, sendo que ela não é um posto vitalício? Não há explicação para a “criancice”. A não ser que a palavra mais correcta seja “sacanice”.
Sono
Entrei na morgue no dia mais feliz da minha infância. Os braços esticados, em forma de sono, impeliam-me majestosamente em direcção ao desconhecido por que eu tanto ansiava, em formas estridentes de loucura suave e pacífica. Encontrara pela primeira vez o verme longínquo e latente que me atormentara a consciência durante tantos anos, e a calma dos meus ossos assombrava a quietude do meu andar seguro pleno de convicção. Todas as dores em lençóis brancos sujos de mágoa, que eu visitara no meio do meu sono mais suave, desvaneciam-se agora sob o efeito de cada passo inclinado na escada sempre a subir do corredor que antecedia a porta alta e branca, de ferro lacado, pintalgada aqui e ali de manchas de ferrugem mais velhas do que eu.
Crónicas dos olhares por cima dos carros
-Oh, vem! Anda para cima de mim! Penetra-me bem fundo! Eu amo-te tanto. Tu nem sabes como eu te amo tanto, meu querido. Desde o primeiro dia, lembras-te? Estavas tu parado no apeadeiro do autocarro. Sorrias para uma criança que dançava à tua frente. E eu, quis logo agarrar esse teu sorriso com os dentes. Eras tão cândido! Oh! Vem para cá! Fura-me! Anda! Tu olhaste para mim e continuaste a sorrir, como se a partir desse momento também eu fosse criança, uma criança bela e despreocupada. Eu logo ali me despedi do mundo para me devotar a ti, meu amor…