O encontro
Eu tinha chegado há pouco àquela cidade, devido à necessidade de conseguir trabalho, isto depois de uma breve passagem pelas salas escuras e anónimas de uma pequena instituição de ensino superior do interior, quando conheci S. e aquele grupo heterogéneo de amigos no meio do qual eu agora me passeava. Eu era de qualquer forma um estranho, um out-sider naquela cidade, eu, que conhecia o mundo através dos livros que lia, vivendo até então uma vida ascética e inóqua de prazeres modernos. De maneira que toda aquela grandiosidade das formas exercia uma espécie de fascínio sobre mim, apesar de nos primeiros tempos a dificuldade em me adaptar fosse quase penosa e me fizesse ter vontade de fugir, de escapar das pessoas e dos seus tentáculos de amizade. Até que conheci S., durante um episódio assaz singular.
Foi quando entrei pela primeira vez num daqueles locais de dança que pululam um pouco por todo o lado. Estava sozinho. Obviamente sentia-me um tanto deslocado, no meio de toda aquela gente que se contorcia alegremente enquanto dançava, que bebia e fumava de uma forma maravilhosa, sentindo-me eu um ponto negro miudinho numa imensa tela branca. Na ânsia de me sentir um pouco melhor entreguei-me desde logo à bebida, mandando vir sucessivamente uns licores e uns copos de rum, de maneira que após algum tempo estava já ligeiramente embriagado, sentindo os vapores tépidos do álcool assomarem-me à cabeça. Foi então que a vi, a um canto, conversando com uns tipos. Nada nela me chamou especial atenção, mas no entanto não pude deixar de fixar o meu olhar já meio desfocado na sua figura, e com tal insistência que acabei por sentir uma leve dor de cabeça. Pensei que seria melhor parar de beber e ir-me embora. A música tornara-se insuportável e a cabeça andava-me já à volta como se de um peão se tratasse. Preparava-me para levantar e vestir o sobretudo, quando ouvi uma voz muito suave atrás dele:
-Gostas de mim?
Virei-me e dei de caras com S. que pelos vistos acabara a conversa e se encontrava agora ali à minha frente. Notei que já estava seguramente um pouco bebida; a sua face estava anormalmente rosada e o olhar parecia bastante turvo.
-Eu vi-te a olhar para mim. É que se gostares de mim eu passo a gostar de ti, também.
Fiquei um pouco surpreendido com as suas palavras, achei-as muito estranhas mesmo, quis-lhe responder qualquer coisa com nexo mas, aos tropelões, disse apenas qualquer coisa como isto:
-O gosto é extensivo à beleza. Se me provares que és bela, então aí, eu gostarei de ti.
Ela riu-se. De uma forma muito solta, a resposta agradara-lhe. Convidou-me. a tomar um último copo ao que, após alguma hesitação, acedi.
O salão encontrava-se agora bem mais vazio, a hora tardia e o cansaço afastava lentamente os casais e toda a gente dali para fora, de maneira que apenas eu e S. ainda bebiamos sentados. Um copo meio de whisky balançava suavemente nas suas mãos brancas e esguias.
-Tu não és daqui, pois não?- perguntou, enquanto acendia um cigarro.
Respondi que não, que estava na cidade há pouco tempo, que trabalhava num escritório piolhoso de uma ruela esquecida, e que por enquanto não conhecia ali ninguém.
-Na ternura do desconhecido reside o encanto de uma vida… – respondeu ela no meio de um sorriso límpido mas transtornado pela bebida. Deixa lá que daqui a pouco tempo isso acaba. Acaba-se toda a piada. Deixa-se de sentir o delicioso charme que o não conhecer nada nem ninguém nos põe no andar.
Não pude deixar de sorrir.
-Achas isso mesmo?- perguntei.
-Claro, vais ver que depois só conheces gente e acha-los todos chatos e inoportunos. De resto… és agora um desconhecido que provavelmente se tornará um conhecido e um chato, como os outros.
Olhava para ela, a tentar descortinar uma qualquer ponta de ironia, mas não, parecia muito segura e a falar com seriedade. Tentei dizer-lhe que de modo algum concordava com ela, mas saiu-me exactamente o contrário, uma frase neutra.
-As pessoas têm uma necessidade vital de convívio. A natureza…
-A natureza quer que nos amemos… temos isso no sangue. Mas eu não consigo amar uma pessoa que conheço há séculos e no entanto continua ininteligível para mim, quer dizer, que conheço bem demais para a não detestar. Daí ser preferível apenas conhecer desconhecidos, viver num eterno desconhecimento flutuante.
E riu-se, movendo apenas a sua cabeça, suavemente, como se tratasse antes de um leve pranto que fosse imperceptível a mim e aos empregados que se preparavam para levantar as mesas.
-Posso presumir então que não te verei mais – repliquei.
-Não. Ainda não te conheço, ainda não te detesto. Vamos…
E levantámo-nos.
*
Nessa noite havia muita humidade no ar. O chão encontrava-se molhado e brilhante, assemelhando-se a uma espécie de espelho onde se reflectiam as luzes periclitantes e artificiais dos reclamos de néon das lojas comercias. Caminhavamos em silêncio. S., de cabeça baixa e cabelo esvoaçante parecia meditar profundamente. Eu ia de mãos nos bolsos, observando as irregularidades do passeio. A dada altura ela levantou os olhos.
-Eu moro aqui. Aparece cá amanhã, à hora do jantar. Temos festa…
Bórgia Ginz, in O Anormal