Juca Pimentel
Decidi acender um cigarro, quando entrou no café um indivíduo de baixa estatura e aspecto desleixado que se dirigiu apressadamente para o balcão e logo se pôs a gritar para o empregado que o fora atender, tornando-se totalmente impossível não o deixar de ouvir:
-Eu sei que o senhor tem pouca consideração por mim! Não, não diga nada, pois eu vejo-o nos seus olhos! Estava eu ainda desinteressado de tudo isto a que chamam “ir a um café” e já me vem o senhor abeirar-se e perguntar o que quero. Eu não quero nada! Eu só quero estar aqui! E além disso não poderia querer alguma coisa porque não teria dinheiro para o pagar. Mas eu sabia! Eu estive lá fora, a ser empurrado por gente que não conheço, a ser pisado e cuspido, a tentar encontrar a coragem para fazer avançar uma das pernas em direcção à porta desta espelunca. Estive lá uma boa vintena de minutos1 E mesmo assim tive de reunir todas as minhas forças, mesmo aquelas que ignorava possuir, para, num impulso e com uma lâmina a dilacerar-me os pulsos entrar e encostar-me ao balcão como se fosse uma pessoa normal!
Eu olhei melhor e vi realmente uma navalha de imitação que ele segurava na mão direita e encostava ao pulso esquerdo. O homem agora já não falava e o jovem empregado empalidecera até á cor da perafina, não podendo articular qualquer palavra que fosse. De súbito, a expressão dura do desconhecido abriu-se num enorme sorriso e levantando os braços acrescentou:
– Caro amigo, acalme-se! Estava só a brincar consigo! Eu sei que não devia fazer isto, mas é uma mania que não me sai. Eu só queria ver a sua reacção e de certa forma fazer-lhe um aviso: é que o inesperado pode acontecer e há muitos malucos por aí!
O empregado, bastante atrapalhado, fez que sim com a cabeça.
– Bem, já vi que percebeu, sim senhora, deixo-o. Já agora traga-me um brandy que o efeito do último já vai passando.
Não dava para perceber se o homem se encontrava embriagado, á primeira vista tudo indicava que sim, mas a forma como lançou um olhar largo por toda a sala indicava a existência de um controle que seria impossível caso estivesse deveras bebido. Com as duas mãos, segurou no copo que lhe for a servido e pareceu-me dizer qualquer coisa, um murmúrio, como se falasse para o líquido escuro e alcoólico que parecia o centro de todas as suas atenções.
Foi então que ele nos viu, e logo se aproximou da nossa mesa, cambaleante.
– Ainda ontem estava eu a fazer malha com os meus pensamentos mais descabidos, quando me apercebi de que nada me fazia sentir o frio das outras pessoas. Quando entraram três meninas recatadas na palidez do meu estado, logo me percorreu uma enorme vontade de lhes tocar, de sentir a libido dos seus corpos imundos. Sou uma besta sexual? Não, apenas me apaixono facilmente. É como levantar a colher de sopa e erguê-la à altura dos lábios: após anos de treino já nem nos apercebemos que o fazemos.
Falava lentamente, abanando a cabeça a cada sílaba pronunciada. Um pedaço viscoso de baba pendia-lhe do canto da boca húmida. Vinho… parecia vinho.
De súbito levantou-se ruidosamente e pôs-se a cantarolar a 5ª Sinfonia de Beethoven, acompanhando a sua cantilena com um esbracejar violento, com tal barulho que logo as pessoas que estavam no café dirigiram o olhar para ele. S. também olhava para ele, e ria-se, baixinho, imóvel, com todos os seus dentes brancos a reflectirem-se copo de Porto que segurava na mão esquerda.
– Cantem, cantem comigo! – incentivava o indivíduo.
S. sorriu ainda mais, mas sem se mexer, continuava a fumar. Quanto a mim, acompanhei-a. Via-se que o homem fazia um esforço tremendo para se manter de pé, oscilando pesadamente de um pé para o outro. Com as mãos à altura do peito, cantava cada vez mais alto, o que o fazia engasgar-se aflitivamente. De súbito, olhou-nos de fronte, completamente ofuscado por qualquer coisa que ia dizer, e caiu pesadamente em cima da mesa, vomitando mesmo ali. Foi um problema trazê-lo dali para fora. Começou a discutir ferozmente com o dono do estabelecimento e logo depois caiu num imenso torpor alcoólico que o deixou inconsciente. Uma vez cá fora deitá-mo-lo no passeio e esperámos uns bons dez minutos antes que se recompusesse. Acordou e logo cuspiu para cima do meu braço.
– Como te chamas? – perguntei.
– Juca… Juca Pimentel – respondeu atordoado.
– E o que é que fazes?
– Sou poeta.
E voltou a adormecer.
Bórgia Ginz, in O Anormal