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O Anormal

Café

Bórgia Ginz

No salão do café só estão agora alguns casais de idosos. Parece-me estar na fronteira de dois mundos que não coexistem de uma forma harmoniosa. Do lado de fora do café vagueiam os seres apressados, de objectivos bem definidos e ansiosos. Os jovens. No lado de dentro permanecem os idosos, cuja vida passou em frente a seus olhos sem deixar as marcas de uma missão. Eu estou bem encostado à montra, com uma janela enorme, com os olhos postos nas pessoas que passam lá fora, mas com a alma bem dentro da escuridão do salão. Sinto-me, (que absurdo eu sentir-me assim), o fiel da balança que nunca se equilibra, pois o peso morto da velhice é bem mais leve que todas as vidas que ainda viverão até ao futuro.

O ventre daquela mulher que tanto me agradou é saliente, o rabo torneado, as pernas finas talvez demais. O curioso é que o seu olhar vê-me como se eu falasse para ela, encostada ao balcão, talvez ali ao fundo onde não está ninguém. Mas nunca lhe disse coisa alguma.

O comprido dos cabelos chega ao fundo das costas magras e de ombros levemente inclinados para trás; traço lógico e singular de uma certa categoria de mulheres que teimam em não exprimir a sua beleza de uma forma mais viril. O que é certo é que poderia muito bem falar com ela, segurar-lhe a mão e encaminhá-la para a saída do bar, onde, no frio e escuridão da noite lhe faria um belo poema, mesmo ali, de improviso. O mais certo é que nunca cometerei tal proeza; o heroísmo anda arredado de mim de algum tempo a esta parte. O belo da questão é que o seu andar torto e a jovialidade aparente do seu sorriso deixam antever belas noites, longas e longas, cheias de apaixonadas conversas e abraços inocentes. É curioso.

Na semana passada decidi que iria viver plenamente e convictamente em castidade. Naquele dia da semana passada a ideia surgiu-me bela e bonita, linda e maravilhosa, e dei comigo a pensar que a partir daquele dia da semana passada é que as coisas enfim se tornariam belas e bonitas, lindas e maravilhosas. Não mais viver em função de baixos expedientes para conseguir um toque fortuito na suavidade de uma mulher; ou um beijo rápido e pouco apaixonado quanto rápido, ou outra coisa qualquer que me desse a ilusão de um prazer de um tamanho maior do que o mundo: essa terna ideia de acalmia e inocência enchia-me a cabeça de belos projectos e dava-me a provar o belo aroma da felicidade. Nunca chegaria a saber como seria isso tudo. Naquele dia da semana passada fazia muito calor, era de tarde, e o sol estava particularmente esfuziante. Saí do café onde tinha cogitado todas aquelas belas ideias, atravessei a passadeira para o outro lado da rua, aquela mulher estava à minha frente, esperava que os carros parassem, tinha uma saia tão bonita, uma pele de arrepiar, os ombros direitos, a saia não protegia o necessário, as pernas sem mácula, se eu lhe visse a cara então é que era, e assim por diante…

É verdade, toda a gente quer ser especial. Mas se toda a gente fosse especial, toda a gente quereria ser tudo menos especial. As virtudes, quando são em demasia até chateiam, são como os vermes que vão roendo, roendo, muito lentamente, sem que a gente se aperceba da sua presença imponente. Por exemplo:

Aquela mulher perdera o amor que outrora sentira por mim. Não podia de qualquer modo negar tal facto; mesmo que a compreensão das coisas surgisse lenta e triste, bem amortalhada pelo peso da memória. Por outro lado a amizade era algo que não me interessava. Bem podia eu gritar isso a plenos pulmões que menos nisso acreditaria. O facto é que a virtude começava a queimá-la, ou melhor, a picá-la, assim como que a dizer-lhe: “Vês? Vês?” Mas mesmo assim ela nunca via nada. Apenas pressentia a fuga como tábua de salvação e ei-la, toda ocupada a equilibrar-se naquele pequeno pedaço de madeira enquanto bate os braços tão nervosamente naquela água tão suja.

O equilíbrio. Eis uma coisa que é daquelas mesmo fundamentais. “O equilíbrio da mente aliado ao equilíbrio do corpo dá saúde e faz crescer”. Tudo muito certo. Mas o equilíbrio que realmente importa é um equilíbrio desse tipo sim, mas dos outros. O equilíbrio dos outros. Os outros, esses é que fazem a nossa vida, os nossos desejos, as nossas desmedidas ambições. E dentro desses outros equilibrados eu tinha perdido o lugar. Pelo menos ela julgava assim.

Eu sei que a morte poderia bem ser a melhor justificação para tudo. Mas o menos nunca é suficiente. E o menos mais menos que a morte me proporcionaria é bestialmente insuficiente. Não chega ter as dores que tenho, para proclamar em hasta pública que sou um miserável, que padeço da doença do suicidiário agudo. Não. As honras da minha vida não pertencem a ninguém. É como uma casa que vai a leilão, com muitos e bons potenciais compradores, mas que tem defeitos, uma racha na parede, a lareira que não funciona bem, e assim vai ficando sem um único rematador.

Mas aquela mulher que tanto me agradou, aquela do ventre saliente, é bem mais súbtil que qualquer pensamento mais destrutivo da minha parte. Ela na verdade não significa nada. É apenas mais uma, apanhada na corrente da minha existência só, que pomposo!, é apenas uma mulher. E aí está! É isso que ela tem de mais encantador. O olhar é normal, o andar, embora torto, é normal, o corpo é normal, os cabelos são normais, tudo correcto. Só que essa normalidade toda junta, toda aconchegada, contribui para que se forme um quadro onde se representa a beleza!

Não, não me sinto nada fascinado por essa mulher. Foi apenas uma que da primeira vez não desviou o olhar quando fixei nele o meu. Uma mulher que esperou um breve microsegundo para tentar ver algo para além do apresentável. Mais nada. Há tantas mulheres que olham!

Bórgia Ginz, in O Anormal





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