Memória
A memória perdura na minha mente. Ainda… Faltam os acasos todos subtis, para que o assombro do sentir se volte para mim e me faça vibrar no escuro do meu quarto escuro.
Como todas as coisas que se fazem amenamente, o vicio já não tem a sua conta de maravilha, ele eclipsou-se para sempre em vagas de sonho inconcreto, velho, menos amoroso do que a rocha mais dura e inviolada. É a miséria a vibrar os seus golpes cruéis e certeiros.
Sinto os braços como se eles cumprissem os onze trabalhos de Jasão. Cansados e frouxos, num misto de dor e fadiga, que é sem dúvida aliada da inacção da mente. A cerveja que há muito deixou de percorrer o seu meu corpo faz aparecer as suas marcas; ou a falta das suas marcas. O meu cansaço físico é bem físico! Já não é apenas a mente a gritar pelo descanso. O nervosismo dos membros assanhados assemelha-se à senilidade do corpo de um velho, oxigenado, ou com falta de oxigénio, que é rigorosamente o mesmo, porque vai dar invariavelmente à morte.
Tenho todo o tempo do meu tempo para retomar a minha vida, com os braços cheios de pedidos e de ansiedades. Eu necessito de paixão. Mas, de uma paixão que tenha a pureza de uma primavera, de um renascer de corpo, e de alma. A dor física e psicológica que sinto é de uma atrocidade enorme, desencorajante, mas tenho que perceber que só assim poderei encontrar uma qualquer paz de espírito. Devo apoiar-me no tempo, e procurar em mim o alimento de que necessito. Quero de novo sentir o vento a revolver-me os cabelos. Necessito de uma pequena fúria. Vou escrever para as gerações vindouras. Mas não tenho a sinceridade suficiente para falar das coisas como elas aconteceram realmente. Se as pessoas conhecessem os pequenos pormenores da minha vida. Mas eu já vou pensando na realidade como uma realidade literária, já faço a selecção até das pessoas que são, ou não são, literárias. Agora que vivo só, mais uma vez, vou deixar que os meus personagens vivam por mim. Vou criar pedaços de eu mesmo que vão vaguear por aí, no meio das coisas mais fantásticas e extravagantes. Depois, encontrá-os-ei por aí e aí me dirão todas as peripécias que testemunharam. Lembro agora que tenho ainda certos personagens presos no esquecimento, a quem falta apenas libertar para me felicitarem e depois abrir a voz.
Passei a manhã toda e parte da tarde na cama. Quis-me perder, afundar-me nela, mas ela invariavelmente repeliu o meu corpo para a sua superfície. É uma questão de persistência. Um dia destes conseguirei.
Acabou de se sentar, de perfil para mim, uma certa rapariga que recordo conhecer de algum lado. Está só, tal como eu sou só. Apoiou a cabeça de longos cabelos escuros no par de mãos cruzadas, em forma de prece. Não consigo recordar de onde a conheço, mas tenho no entanto a certeza que já vivi uma apaixonada estória de amor com ela. Ela ficou a olhar pela porta fora, observando, coisa que eu fizera até ela entrar, as pessoas que passam lá fora, debaixo do Sol que parece furioso. Ela não tem um sorriso bonito, mas que importância tem isso agora. De bom grado me abandonaria agora nos seus braços de mãos de unhas compridas. Ela foi-se embora. Adeus…
Bórgia Ginz, in O Anormal