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O Anormal

S

Bórgia Ginz

– Acreditas na beleza?
– Acredito na minha beleza, e na dos filhos que terei mais tarde.
– És muito narcisista.
– Não! Sou apenas uma mulher deste século, alguém que deixou de acreditar em qualquer coisa que não ela própria. Aliás… como toda a gente que conheço. Eu só te digo as coisas desta maneira para te fazer ver as coisas como elas são hoje em dia. Se perguntasses a uma Antonieta ou a um Jeraldino qualquer, eles responderiam invariavelmente da mesma forma: eu, mim, minha… Se não fosse assim, as pessoas amar-se-iam todas, e isso seria insuportável, um verdadeiro suplício. Não, as pessoas preferem proteger-se atacando os outros, a estender a mão e beijar a face de alguém que se calhar nem se conhece de lado algum. E em relação às pessoas que não se conhece o caso até se complica: é que ninguém sabe se no bolso têm uma flor ou uma faca. Bem, é difícil terem uma flor… Não houve já tantas guerras? Tudo a mesma coisa. Todos a pensarem que todos tinham uma faca no bolso! Nunca ninguém soube o que passou pela cabeça desses mortos todos, desses tipos de armas na mão que viram a porta fechar-se sob o impulso de uma bala. Mas decerto que se lhes dessem mais dez minutos de vida, os gastariam a chorar, como crianças cheias de dor, por nem elas nem os que mandam terem sabido erguer a flor bem alto e a tempo. Desenterrem-nos e ainda lhes verão na face amortalhada a expressão de surpresa por se terem apercebido que o que existe na vida é pura e simplesmente a probabilidade de morrer ao virar da esquina. Sem glória nem despedida, quanto mais dignidade. Depois há os outros que vivem como se ainda estivessem no interior das barrigas das mães, existindo a custa do que o sistema organizado e secular a que chamam civilização lhes dá. Enquanto jovens ficam-se por casa, e depois de concluídos os estudos empregam-se e entram no enorme rebanho bem sucedido dos que produzem algo: mais um computador, ou uma barragem, ou dois quilos de arroz, conforme… E sentem-se especiais, sentem-se importantes, olham para o vizinho, menos afortunado, e pensam: « Eu fiz mais e melhor do que ele, tenho um curso superior e distinção, ganho agora muito dinheiro, fiz o que devia, posso-me orgulhar de ter cumprido o meu dever. » E pensam tudo isto enquanto fazem a barba, de manhã, e se preparam para tirar da garagem o carro que os levará ao emprego. E pensar que viverão uma vida sem parar para perguntar: « Porquê? » Uma pessoa, antes de ser um filho, antes de ser um estudante, antes de ser um empregado, é um Homem. Um ser humano que não se poderá contentar em fazer parte de um acordo geral com a mecanização humana, que não poderá perder o rasto da sua individualidade. Essas pessoas pensam que produzem e contribuem para o engrandecimento da humanidade, mas não fazem nada que alguém nas mesmas condições não faça. Daqui a poucos anos dar-se-á inevitavelmente a sua queda na indiferença, no abismo do dispensável. Então, serão substituídas por máquinas, mais económicas e eficientes, e aí, onde residirá a importância e a glória dessas pessoas: em Nada! Porque de facto nunca criaram nada. Apenas deram o corpo enquanto foi necessário. Farão menos que uma planta que renova o ar. A pouco aspiram essas pessoas! Dou mais vivas a um camponês que nunca viu o mar e se alegra por fazer brotar da terra uma semente do que a um engenheiro que se entusiasma por ter obtido uma promoção. É por isto tudo que há tanta gente que chega ao fim de uma longa vida e, olhando para trás, apenas encontram o vazio. Se lhes perguntares o que de mais importante lhes aconteceu ou fez, terão uma única e breve resposta: « Os meus filhos! » Porque poderá não haver nada mais belo do que ter um filho, e porque sentirão que foi a coisa que deram ao mundo e é criação inteiramente sua, única, verdadeiramente bela. E eles sentem isso como sendo o único elo que ainda os liga à tal humanidade que tanto serviram durante toda a vida. A vida á como aquela pequena moeda que repousa solitária no fundo do bolso das nossas calças: temos que escolher onde vamos gastá-la. E tenho a certeza que muito mais difícil do que ser mais um a gozar a vida, é sem dúvida tomar o rumo que nós achamos mais correcto e assim arcar com as consequências… Mas dói imenso não ter ninguém com quem afagar um rato na escuridão do nosso quarto.
E calou-se. Vi então que os seus olhos se tinham humedecido de súbito, brilhando ténuamente no meio da penumbra que afogava o canto onde nos encontrávamos. Havia nela, na maneira como se inclinava por sobre a mesa, no modo como erguia o cigarro à altura dos lábios, qualquer coisa que me deixava perplexo e fascinado. Tinha á minha frente alguém que vivia em sonho o que as outras pessoas esqueciam ao acordar de manhã, na placidez dos lençóis enrugados, alguém que se fustigava por ter nascido sem escolha própria. Estava encerrada no seu próprio corpo, e gritava pelo mar e céu: gritos mudos, amordaçados pela estúpida indiferença de toda uma vasta plateia que mais não fazia do que rir sem saber bem porquê. S. tinha chegado àquele ponto em que o limiar da incerteza se transforma em cruel desilusão. A realidade queima mais do que uma pira funerária e ela tinha percorrido todos os cemitérios do mundo. Nunca me sentira tão perto de uma pessoa como naquele momento, pela primeira vez olhava uma mulher e via-a realmente, não estando defronte de um pedaço de vidro translúcido com alguma capacidade de reflectir imagens, não, S. existia efectivamente e assim deslocava qualquer coisa no espaço que era meu também.

Bórgia Ginz, in O Anormal





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